A
ALMA E A MORTE
C. G. Jung
Muitas vezes
eu tenho sido indagado a respeito do que eu acredito sobre a morte, o
inquestionável término da existência individual. A
morte é conhecida por nós simplesmente como o fim. É
o ponto final, sempre colocado após o fechamento da sentença
e seguido apenas por memórias e efeitos posteriores nos outros.
Para a pessoa que morre, contudo, a areia se escoou na ampulheta; a pedra
em movimento chegou ao repouso. Quando a morte nos confronta, a vida sempre
parece um fluxo descendente ou um relógio que foi accionado e cuja
"parada" final é tida como certa. Nunca estamos mais
convencidos dessa "parada" do que quando a vida humana chega
ao seu fim diante dos nossos olhos e a questão do sentido e do
valor da vida nunca se torna mais urgente ou mais angustiante do que quando
vemos o suspiro final deixar um corpo que instantes antes estava vivendo.
Quão
diferente o sentido da vida se apresenta quando vemos uma pessoa jovem
se empenhando por metas distantes e planejando o futuro e comparamos isso
com um inválido incurável, ou com um idoso que está
se encaminhando relutante e impotentemente para um túmulo! Juventude
- gostamos de pensar - tem propósitos, futuro, sentido e valor,
enquanto a chegada a um fim é apenas uma cessação
sem sentido. Se um moço está preocupado com o mundo, com
a vida e o futuro, então todo mundo acha isso lamentável,
sem sentido, neurótico; ele é considerado covardemente ocioso.
Porém, quando uma pessoa idosa treme secretamente e, mesmo, está
mortalmente preocupada com o pensamento de que sua expectativa de vida
razoável agora é de apenas uns tantos anos, então
somos dolorosamente lembrados de certos sentimentos dentro de nossos próprios
peitos; olhamos para longe e mudamos a conversa para algum outro tópico.
O optimismo com que julgamos o moço falha aqui. Naturalmente, temos
um estoque de banalidades apropriadas sobre a vida que ocasionalmente
distribuímos para nossos semelhantes tais como "todos devem
morrer algum dia", "não se pode viver para sempre"
etc. Porém, quando se está só, e é noite,
muito escura, e ainda não se ouve nada e não se vê
nada a não ser os pensamentos que somam e subtraem os anos, as
longas filas daqueles fatos desagradáveis que, impiedosamente,
indicam quão longe o ponteiro do relógio se moveu adiante
e a lenta, irresistível aproximação do muro da escuridão
que finalmente engolfará tudo que eu amo, possuo, desejo, espero
e planejo, então, todas as nossas profundidades sobre a vida se
esvaem furtivamente para algum esconderijo secreto e o medo envolve o
insone como um cobertor asfixiante.
Muitos jovens
têm, no fundo, um medo pânico da vida (ainda que, ao mesmo
tempo, eles a desejem intensamente) e um número ainda maior de
idosos tem o mesmo medo da morte. De fato, eu conheci pessoas que temeram
muito a vida quando eram jovens, para, depois, igualmente, sofrerem pelo
medo da morte. Quando eles são jovens, diz-se que eles têm
resistência infantil contra as demandas normais da vida. Pode-se
dizer a mesma coisa quando eles são velhos, pois estão,
do mesmo modo, temerosos com uma das demandas normais da vida. Estamos
tão convencidos de que a morte é simplesmente o fim de um
processo que, ordinariamente, não nos ocorre conceber a morte como
uma meta e um preenchimento, como fazemos, sem hesitação,
com os desígnios e propósitos da vida juvenil na sua ascendência.
A vida é
um processo-energia. Como todo processo-energia, ela é, em princípio,
irreversível e é, portanto, dirigida a uma meta. Essa meta
é um estado de repouso. No fim das contas, tudo o que acontece
é, assim como foi, não mais do que o distúrbio inicial
de um estado de repouso perpétuo que continuamente tenta se restabelecer.
Vida é teleologia par excellence1; é o esforço
intrínseco em direcção a uma meta e o organismo vivo
é um sistema de intenções que aspiram se realizar.
O fim de cada processo é sua meta. Todo fluxo de energia é
como um corredor que se empenha, com o maior esforço e toda a sua
força para atingir sua meta. O desejo juvenil pelo mundo e pela
vida, pela satisfação de elevadas expectativas e metas distantes
é o óbvio impulso teleológico da vida que, imediatamente,
se transforma em medo da vida, resistências neuróticas, depressões
e fobias se, num certo ponto, permanece preso no passado, ou recua diante
dos riscos, sem os quais a meta invisível não pode ser atingida.
Com o atingimento da maturidade e no zénite da existência
biológica, a vida se lança em direcção a uma
meta sem nenhum vacilo. Com a mesma intensidade e irresistibilidade com
a qual ela se empenhou para cima antes da meia idade, a vida agora desce;
para a meta que não mais se encontra no pico, mas no vale onde
a ascensão começou. A curva da vida é como a parábola
de um projéctil que, perturbada no seu estado inicial de repouso,
sobe e, então, retorna para um estado de repouso.
A curva
psicológica da vida, contudo, se recusa a se conformar com essa
lei da natureza. Às vezes, a falta de acordo começa cedo,
na ascensão. O projéctil ascende biologicamente, mas, psicologicamente,
ele fica para trás. Nós erramos atrás dos nossos
anos, abraçando nossa infância, como se dela não pudéssemos
nos separar. Paramos os ponteiros do relógio e imaginamos que o
tempo irá parar, quieto. Quando, após algum atraso, nós
finalmente atingimos o pico, então, mais uma vez, psicologicamente,
nós nos acomodamos para repousar e, embora possamos nos ver deslizando
para baixo do outro lado, nós nos apegamos, ainda que apenas com
olhadelas ambiciosas para trás, para o pico uma vez atingido. Assim
como, cedo, o medo era um empecilho para a vida, também agora ele
oferece resistência no caminho da morte. Podemos até admitir
que o medo da vida nos reteve na subida, mas, exactamente por causa desse
atraso, nós alegamos de tudo apenas para segurar com firmeza o
pico que agora alcançamos. Mesmo que possa ser óbvio que,
apesar de toda a nossa resistência (agora, tão profundamente
lamentada), a vida tenha se reafirmado, ainda não prestamos atenção
e continuamos tentando fazê-la parar, quieta. Nossa psicologia,
então, perde sua base natural. A consciência se mantém
no ar, enquanto a curva da parábola mergulha na descendente com
velocidade cada vez maior.
A vida natural
é o solo nutritivo da alma. Qualquer um que falhe em seguir com
a vida, permanece suspenso, teso e rígido no meio do ar. É
por isso que muitas pessoas se tornam tolas com a velhice; elas olham
para traz e se agarram ao passado com um medo secreto da morte em seus
corações. Elas se retiram do processo da vida, ao menos
psicologicamente, e, consequentemente, permanecem fixas como nostálgicos
pilares de sal, com vívidas recordações da juventude,
mas sem relação de vida com o presente. Do meio da vida
em diante, somente se mantém vigorosamente vivo quem está
preparado para morrer com vida. Pois, na secreta hora do meio-dia da vida
a parábola se reverteu, a morte nasceu. A segunda metade da vida
não significa ascensão, desabrochamento, incremento, exuberância,
mas morte, já que o fim é sua meta. A negação
da realização da vida é sinónimo de recusa
em aceitar sua conclusão. Ambos significam não querer viver
e, não querer viver é idêntico a não querer
morrer. Expansão e retracção fazem uma curva.
Sempre que
possível, nossa consciência se recusa a se acomodar a essa
verdade inegável. Ordinariamente, nos apegamos ao nosso passado
e permanecemos imobilizados na ilusão da juventude. Ser velho é
muito impopular. Ninguém parece considerar que não ser hábil
para envelhecer é tão absurdo quanto não ser hábil
para superar em crescimento os sapatos infantis. Um homem de trinta anos
ainda infantil seguramente é para ser deplorado, mas um septuagenário
juvenil - não é encantador? E, no entanto, ambos são
perversos, sem estilo, monstruosidades psicológicas. Um homem jovem
que não lute e conquiste perde a melhor parte de sua juventude
e, um homem velho que não sabe como ouvir os segredos dos regatos,
conforme eles despencam dos picos para os vales, não faz sentido;
ele é uma múmia espiritual que não é mais
do que uma rígida relíquia do passado. Ele se mantém
à margem da vida, mecanicamente se repetindo a última trivialidade.
Nossa relativa
longevidade, confirmada pelas estatísticas atuais, é um
produto da civilização. É totalmente excepcional
para os povos primitivos atingir a velhice. Por exemplo, quando eu visitei
as tribos primitivas do Leste da África, vi muito poucos homens
com os cabelos brancos que poderiam ter mais de sessenta anos. Mas, eles
eram realmente velhos, eles pareciam ter sido sempre velhos, tão
plenamente eles haviam assimilado suas idades. Eles eram exactamente o
que eles eram, em todos os aspectos. Nós somos sempre apenas mais
ou menos o que realmente somos. É como se nossa consciência
tivesse, de algum modo, se afastado de seus alicerces naturais e não
mais soubesse como se alinhar com o ritmo da natureza. É como se
sofrêssemos de uma hybris2 da consciência que enganosamente
nos leva a acreditar que o tempo de vida de alguém é uma
mera ilusão que pode ser alterada de acordo com sua vontade. (É
de se perguntar onde nossa consciência obtém tal habilidade
para colocar-se tão contrária à natureza e o que
essa arbitrariedade poderia significar.)
Assim como
um projéctil voando para sua meta, a vida termina na morte. Mesmo
sua ascensão e seu zénite são apenas estágios
e meios para essa meta. Essa fórmula paradoxal não é
mais do que uma dedução lógica do fato que a vida
se dirige para uma meta e é determinada por um propósito.
Não creio que eu seja, aqui, culpado de jogar com silogismos. Nós
garantimos meta e propósito para a ascensão da vida; por
que não para a descida? O nascimento de um ser humano é
prenhe de significados; por que não a morte? Por mais de vinte
anos o homem em crescimento está sendo preparado para o completo
desabrochar de sua natureza individual; por que não poderia o homem
velho preparar-se durante mais de vinte anos para sua morte? Por certo,
no zénite, o indivíduo obviamente atingiu alguma coisa,
ele é isso e ele tem isso. Mas, o que é obtido com a morte?
Neste ponto,
exactamente quando isso poderia ser esperado, eu não quero, de
repente, sacar uma crença do meu bolso e convidar meu leitor a
fazer o que ninguém pode fazer - ou seja, acreditar em alguma coisa.
Devo confessar que eu próprio também nunca poderia fazê-lo.
Assim, eu certamente não afirmarei agora que se deve acreditar
na morte como sendo um segundo nascimento nos levando a sobreviver para
além do túmulo. Mas eu posso ao menos mencionar que o consensus
gentium3 decidiu visões sobre a morte, inequivocamente expressas
em todas as grandes religiões do mundo. Pode-se mesmo dizer que,
em sua maioria, essas religiões são complicados sistemas
de preparação para a morte, de tal modo que a vida, de acordo
com minha fórmula paradoxal, realmente não tem significado
excepto como uma preparação para a suprema meta da morte.
Nas duas maiores religiões vivas, o Cristianismo e o Budismo, o
sentido da existência é consumado no seu fim.
Desde o Iluminismo se desenvolveu um ponto de vista a respeito da natureza
da religião que, ainda que seja uma concepção racionalista
tipicamente equivocada, merece ser mencionado porque é muito amplamente
disseminado. De acordo com essa visão, todas as religiões
são alguma coisa parecida com um sistema filosófico e, como
eles, são tramadas na cabeça. Supõe-se que alguém,
em algum momento, inventou Deus e diversos dogmas e que tem conduzido
a humanidade por aí, puxada pelo nariz, pelo nariz com essa fantasia
"desejosa"4.
Mas, essa
opinião é contraditada pelo fato psicológico de que
a cabeça é um órgão particularmente inadequado
quando se começa a pensar em símbolos religiosos. Eles decerto
não provêm da cabeça, mas de algum outro lugar, talvez
do coração; certamente, de um profundo nível psíquico
muito pouco semelhante à consciência, que é sempre
a camada superior. É por isso que os símbolos religiosos
têm um carácter nitidamente "revelador"; eles são,
usualmente, produtos espontâneos da atividade psíquica inconsciente.
Eles são alguma outra coisa além do pensamento; ao contrário,
no curso do milénio, eles se desenvolveram, vegetativamente , como
manifestações naturais da psique humana. Mesmo actualmente
podemos ver em indivíduos, a génese espontânea de
símbolos religiosos genuínos e válidos, aflorando
do inconsciente como flores de uma espécie estranha, enquanto a
consciência fica à margem, perplexa, não sabendo o
que fazer com essas criações. Pode-se assegurar, sem muita
dificuldade, que, na forma e no conteúdo, esses símbolos
individuais provêm da mesma mente, ou "espírito"
(ou o que quer que seja chamado) inconsciente, como as grandes religiões
da espécie humana. Em todo caso, a experiência mostra que
as religiões não são, em nenhum sentido, construções
conscientes, mas que provêm da vida natural da psique inconsciente
para a qual, de algum modo, dá adequada expressão. Isso
explica suas distribuições universais e suas enormes influências
sobre a humanidade através da história, o que seria incompreensível
se os símbolos religiosos não fossem , no fundo, verdades
da natureza psicológica do homem.
Eu sei que
muitas pessoas têm dificuldade com a palavra "psicológica".
Para confortar esses críticos, eu gostaria de acrescentar que ninguém
sabe o que é a "psique" e que se sabe muito pouco o quão
longe a "psique" se prolonga na natureza. Uma verdade psicológica
é, assim, apenas uma coisa tão boa e respeitável
como uma verdade física, a qual se limita à matéria
como aquela o faz à psique.
O consensus gentium que se expressa através das religiões
está, segundo vemos, em correspondência com minha fórmula
paradoxal. Por consequência, pareceria estar mais de acordo com
a psique colectiva da humanidade considerar a morte como a realização
do sentido da vida e como sua meta mais verdadeira, ao invés de
uma mera cessação sem sentido. Qualquer um que aprecie uma
opinião racionalista a esse respeito, se isolou psicologicamente
e permanece em oposição à sua própria natureza
humana básica.
Esta última
sentença contém uma verdade fundamental sobre todas as neuroses,
vez que as desordens nervosas consistem primeiramente numa alienação
dos próprios instintos, numa separação da consciência
de certos fatos básicos da psique. Por consequência, opiniões
racionalistas andam inesperadamente junto de sintomas neuróticos.
Como estes, elas consistem em pensamento distorcido, que tomam o lugar
de pensamento psicologicamente correcto. Essa última espécie
de pensamento mantém sua conexão com o coração,
com os caminhos da psique, a raiz-mestra. Pois, iluminação
ou não-iluminação, consciência ou não
consciência, a natureza se prepara para a morte. Se pudéssemos
observar e registrar os pensamentos de uma pessoa jovem quando ela tem
tempo e ócio para devaneios, descobriríamos que, à
parte algumas imagens-memória, suas fantasias estão, principalmente,
preocupadas com o futuro. De fato, muitas fantasias consistem em antecipações.
Elas são, em sua maioria, actos preparatórios, ou mesmo
exercícios psíquicos para lidar com certas realidades futuras.
Se pudéssemos fazer essa mesma experiência com uma pessoa
idosa - sem o seu conhecimento, é claro - naturalmente encontraríamos,
devido à sua tendência a olhar para traz, um número
muito maior de imagens-memória do que em uma pessoa jovem, mas
nós também encontraríamos um numero surpreendentemente
maior de antecipações, incluindo aquelas da morte. Pensamentos
de morte se empilham num espantoso grau, conforme os anos aumentam. Quer
se queira ou não, a pessoa idosa se prepara para a morte. É
por isso que eu penso que a própria natureza já está
se preparando para o fim. Objectivamente, é indiferente o que a
consciência individual possa pensar sobre isso. Mas, subjectivamente,
faz uma enorme diferença se a consciência se mantém
em passo com a psique ou se ela se apega a opiniões das quais o
coração nada sabe. É tão neurótico
na velhice não focar na meta da morte, como o é na juventude
reprimir fantasias que tem que ser feitas com o futuro.
Na minha
longa experiência psicológica, observei uma imensidão
de pessoas cujas actividades psíquicas inconsciente eu podia seguir
na presença imediata da morte. Como regra, o fim que se aproxima
era indicado por aqueles símbolos que, também na vida normal,
evidenciam mudanças na condição psicológica
- símbolos de renascimento, tais como mudanças de localidade,
viagens e outros parecidos. Frequentemente, eu tive a oportunidade de
traçar de volta, por mais de um ano, numa série de sonhos,
as indicações da aproximação da morte, mesmo
nos casos onde esses pensamentos não eram instigados por situações
externas. O ato de morrer, assim, tem seu início muito antes da
morte real. Alem do mais, isso muitas vezes se mostra em mudanças
peculiares de personalidade, que podem preceder a morte em um tempo muito
longo. No geral, eu ficava espantado ao ver quão pouco alvoroço
a psique inconsciente faz da morte. Poderia parecer como se a morte fosse
alguma coisa relativamente sem importância, ou, talvez, nossa psique
não se preocupasse com o que acontece com o indivíduo. Mas,
parece que o inconsciente está, acima de tudo, interessado em como
se morre; isto é, se a atitude da consciência está
ajustada ao ato de morrer ou não. Por exemplo, uma vez eu tive
que tratar de uma mulher com sessenta e dois anos. Ela era ainda vigorosa
e moderadamente inteligente. Não era por falta de cérebro
que ela era não conseguia entender seus sonhos. Infelizmente, apenas
era muito claro que ela não queria entende-los. Seus sonhos eram
muito claros , mas também muito desagradáveis. Ela havia
fixado em sua mente que ela era uma mãe impecável com seus
filhos, mas os filhos não compartilhavam essa visão de modo
algum e os sonhos também mostravam uma convicção
muito contrária. Eu fui obrigado a parar o tratamento após
algumas semanas de infrutíferos esforços, porque eu tive
que partir para o serviço militar (era durante a guerra). Nesse
meio tempo, a paciente foi acometida de uma doença incurável,
chegando após uns poucos meses a uma condição moribunda
que poderia levá-la ao fim a qualquer momento. Na maior parte do
tempo ela estava numa espécie de delírio ou num estado sonambúlico
e, nessa condição mental curiosa, ela espontaneamente retomou
o trabalho analítico. Ela falou de seus sonhos novamente e reconheceu
para si mesma tudo o que ela havia previamente negado a mim com grande
veemência e muito mais além. Esse trabalho auto-analítico
continuou diariamente por várias horas, por cerca de seis meses.
Ao fim desse período, ela havia se acalmado, assim como um paciente
durante um tratamento normal e, então, ela morreu.
Dessa e
de numerosas outras experiências desse tipo, eu devo concluir que
a nossa psique é, no mínimo, não indiferente ao acto
de morrer do indivíduo. A urgência, muitas vezes vista naqueles
que estão morrendo, para corrigir o que ainda está errado
poderia apontar na mesma direção.
Como essas experiências devem ser finalmente interpretadas é
um problema que excede a competência de uma ciência empírica
e vai além de nossas capacidades intelectuais, pois, para atingir
uma conclusão final deve-se, necessariamente, ter tido uma experiência
real de morte. Esse evento, infelizmente, põe o observador numa
posição que torna impossível, para ele, dar um relato
objectivo de sua experiência e das conclusões dela resultantes.
A consciência
se move por estreitos limites, dentro do breve intervalo de tempo entre
seu início e seu fim, o qual é encurtado em cerca de um
terço pelos períodos de sono. A vida do corpo continua por
um pouco mais; ela sempre começa antes e, muitas vezes, cessa depois
da consciência. Início e fim são aspectos inevitáveis
do todos os processos. Mesmo num exame mais aproximado é extremamente
difícil enxergar onde termina um processo e outro começa,
já que eventos e processos, começos e fins se fundem e,
falando estritamente, formam um contínuo indivisível. Separamos
os processos uns dos outro para fins de discriminação e
entendimento, sabendo muito bem que, no fundo, toda divisão é
arbitrária e convencional. Esse procedimento de modo algum afecta
o contínuo do todo o processo, pois "começo" e
"fim" são, primeiramente, necessidades da cognição
consciente. Podemos estabelecer, com razoável certeza, que uma
consciência individual, no que ela diz respeito a nós mesmos,
tem um fim. Mas, permanece duvidoso se isso significa que a continuidade
do processo psíquico também é interrompida, já
que a ligação da psique com o cérebro pode ser afirmada
com bem menos certeza hoje do que o poderia ser há cinquenta anos.
A psicologia deve primeiro digerir certos fatos parapsicológicos,
o quê, até agora, ela mal começou a fazer.
A psique
inconsciente parece possuir qualidades que lançam uma luz muito
peculiar sobre sua relação com espaço e tempo. Estou
pensando naqueles fenómenos telepáticos espaciais e temporais,
os quais, como sabemos, são muito mais fáceis de ignorar
do que de explicar. A esse respeito, a ciência, com umas poucas
louváveis excepções, tem, até aqui, pego o
caminho mais fácil de ignorá-los. Devo confessar, contudo,
que as assim chamadas faculdades telepáticas da psique me causaram
muita dor-de-cabeça, pois a designação "telepatia"
está muito longe de explicar qualquer coisa. A limitação
da consciência a espaço e tempo é uma realidade tão
irresistível que cada vez em que essa verdade fundamental é
rompida deve ser classificada como um evento de elevado significado teórico,
pois ele poderia provar que a barreira espaço-tempo pode ser anulada.
O factor de anulação seria, então, a psique, já
que espaço-tempo se agregaria a ela, quando muito, como uma qualidade
relativa e condicionada. Sob certas condições, a psique
poderia mesmo romper as barreiras do espaço e do tempo precisamente
devido a uma qualidade essencial para ela, isto é, sua natureza
relativamente transespacial e transtemporal. Essa possível transcendência
do espaço-tempo, da qual, me parece, há uma boa dose de
evidência, é de uma importância tão incalculável
que ela deveria incitar o espírito de pesquisa aos maiores esforços.
Nosso presente desenvolvimento da consciência está, contudo,
tão atrasado que, em geral, ainda nos faltam os equipamentos científicos
e intelectuais para adequadamente avaliar até que ponto os fatos
da telepatia dão suporte à natureza da psique. Eu me referi
a esse grupo de fenómenos meramente para indicar que a ligação
da psique com o cérebro, isto é, sua limitação
espaço-temporal, já não é mais auto-evidente
e incontroversa como nós fomos levados a acreditar até agora.
Qualquer
um que tenha o menor conhecimento do material parapsicológico que
já existe e tem sido minuciosamente verificado, saberá que
os ditos fenôómenos telepáticos são fatos inegáveis.
Uma investigação objectiva e crítica dos dados disponíveis
estabeleceria que percepções ocorrem como se em parte não
houvesse espaço e, em parte, não houvesse tempo. Naturalmente,
não se pode extrair disso a conclusão metafísica
de que, no mundo das coisas, como elas são "nelas mesmas"
não há nem espaço nem tempo e que a categoria espaço-tempo
é, por conseguinte, uma teia na qual a mente humana se teceu como
numa ilusão nebulosa. Espaço e tempo não são
apenas as mais imediatas certezas para nós, eles são também
óbvios empiricamente, já que tudo o que é observável
acontece como se ocorresse no espaço e tempo. Em face dessa certeza
irresistível, é compreensível que a razão
tenha a maior dificuldade em aceitar a validade da natureza peculiar dos
fenómenos telepáticos. Mas, qualquer um que fizer justiça
aos fatos não pode senão admitir que suas aparentes total
falta de limites espaço-temporais são suas qualidades mais
essenciais. Em ultima análise, nossa ingénua percepção
e imediata certeza são, falando estritamente, não mais do
que evidência de uma forma de percepção psicológica
a priori que, simplesmente, controla qualquer outra forma. O fato
de que sejamos totalmente incapazes de imaginar uma forma de existência
sem espaço e tempo de nenhum modo prova que tal existência
seja ela própria impossível. E, desse modo, assim como não
podemos deduzir de uma aparência de total falta de limites espaço-temporais
nenhuma conclusão absoluta sobre uma forma de existência
sem espaço-tempo, também não podemos concluir da
qualidade espaço-tempo aparente à nossa percepção
que não haja forma de existência sem espaço e tempo.
Não é apenas possível duvidar da validade absoluta
da percepção espaço-tempo; em vista dos fatos disponíveis,
é, mesmo, imperativo fazê-lo. A possibilidade hipotética
de que a psique entre em contacto com uma forma de existência fora
do espaço e tempo coloca uma interrogação científica
que merece sérias considerações por um longo tempo
adiante. As ideias e dúvidas dos físicos teóricos
em nossos dias deveriam induzir um ânimo cauteloso também
nos psicólogos, pois, filosoficamente considerada, o que nós
queremos dizer com "plena limitação do espaço"
senão uma relativização da categoria espaço?
Algo similar poderia facilmente ocorrer com a categoria do tempo (e também
com a da causalidade). Dúvidas sobre esses tópicos estão
mais justificadas actualmente do que em qualquer tempo anterior.
A natureza
da psique atinge obscuridades para muito além do escopo do nosso
entendimento. Ela contém tantos enigmas quanto o universo com seus
sistemas galácticos, diante de cuja majestosa configuração
somente uma mente sem imaginação pode não admitir
sua própria insuficiência. Essa incerteza extrema da compreensão
humana torna o rebuliço intelectualista não apenas ridículo,
mas, também, deploravelmente estúpido. Se, por conseguinte,
das necessidades de seu próprio coração, ou de acordo
com as antigas lições da sabedoria humana, ou por respeito
ao fato psicológico de que a percepção "telepática"
ocorre, alguém chegasse à conclusão de que a psique,
em seus mais profundos alcances, participa de uma forma de existência
para além do espaço e tempo e, assim, compartilha do que
é inadequada e simbolicamente descrito como "eternidade"-
então a razão crítica não poderia contar com
nenhum outro argumento senão que o non liquet5 da ciência.
Além disso, esse alguém teria a vantagem inestimável
de se adequar a uma tendência da psique humana que existe desde
tempos imemoriais e é universal. Qualquer um que não chegue
a essa conclusão, seja por cepticismo ou rebelião contra
a tradição, por falta de coragem ou experiência psicológica
inadequada, ou irreflectida ignorância, tem muito pouca chance,
estatisticamente, de se tornar um pioneiro da mente, mas, ao invés,
tem a indubitável certeza de entrar em conflito com as verdades
de seu sangue. Agora, se essas são, em última instância,
verdades absolutas ou não, nós nunca poderemos determinar.
Basta que elas estejam presentes em nós como uma "tendência"
e nós sabemos, por nossa conta, o que significa entrar em conflito
irracional com essas verdades. Significa a mesma coisa do que a negação
consciente dos instintos - desenraizamento, desorientação,
ausência de significado, ou seja lá como esses sintomas de
inferioridade possam ser chamados. Um dos mais fatais erros sociológicos
e psicológicos, nos quais nosso tempo é tão abundante,
é a suposição de que alguma coisa possa se tornar
completamente diferente de um momento para o outro; por exemplo, que o
homem possa mudar radicalmente sua natureza, ou que alguma fórmula
ou verdade pudesse ser encontrada, o que representaria um começo
inteiramente novo. Qualquer mudança essencial, ou mesmo uma ligeira
melhoria sempre tem sido um milagre. Desvio da verdade do sangue gera
desassossegos neuróticos e nós temos tido o suficiente disso
nestes dias. Desassossego gera total ausência de significado e a
falta de sentido na vida é uma doença da alma cuja inteira
extensão e inteira importância nossa era ainda não
começou a compreender.
1 Por excelência. Em
francês, no original.
2 Desmedida; falta da justa medida. Em grego latinizado,
no original.
3 Senso comum. Em latim, no original.
4 "wishfulfilling fantasy", no original.
5 Não está claro. Em Latim, no original.
Essa expressão é usada para afirmar que não se está
entendendo bem a situação e por isso não é
possível formular um juízo definitivo: na realidade, trata-se
de uma antiga fórmula jurídica, expressa por Cícero,
que indicava a falta de elementos suficientes para proferir um veredicto,
havendo portanto lugar para averiguações suplementares ou
para adiamento. (cf. Dicionário de sentenças Latinas r Gregas,
de Renzo Tosi, Ed. Martins Fontes).
|