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        ALMA E A MORTE C. G. Jung
   Muitas vezes 
        eu tenho sido indagado a respeito do que eu acredito sobre a morte, o 
        inquestionável término da existência individual. A 
        morte é conhecida por nós simplesmente como o fim. É 
        o ponto final, sempre colocado após o fechamento da sentença 
        e seguido apenas por memórias e efeitos posteriores nos outros. 
        Para a pessoa que morre, contudo, a areia se escoou na ampulheta; a pedra 
        em movimento chegou ao repouso. Quando a morte nos confronta, a vida sempre 
        parece um fluxo descendente ou um relógio que foi accionado e cuja 
        "parada" final é tida como certa. Nunca estamos mais 
        convencidos dessa "parada" do que quando a vida humana chega 
        ao seu fim diante dos nossos olhos e a questão do sentido e do 
        valor da vida nunca se torna mais urgente ou mais angustiante do que quando 
        vemos o suspiro final deixar um corpo que instantes antes estava vivendo. 
         Quão 
        diferente o sentido da vida se apresenta quando vemos uma pessoa jovem 
        se empenhando por metas distantes e planejando o futuro e comparamos isso 
        com um inválido incurável, ou com um idoso que está 
        se encaminhando relutante e impotentemente para um túmulo! Juventude 
        - gostamos de pensar - tem propósitos, futuro, sentido e valor, 
        enquanto a chegada a um fim é apenas uma cessação 
        sem sentido. Se um moço está preocupado com o mundo, com 
        a vida e o futuro, então todo mundo acha isso lamentável, 
        sem sentido, neurótico; ele é considerado covardemente ocioso. 
        Porém, quando uma pessoa idosa treme secretamente e, mesmo, está 
        mortalmente preocupada com o pensamento de que sua expectativa de vida 
        razoável agora é de apenas uns tantos anos, então 
        somos dolorosamente lembrados de certos sentimentos dentro de nossos próprios 
        peitos; olhamos para longe e mudamos a conversa para algum outro tópico. 
        O optimismo com que julgamos o moço falha aqui. Naturalmente, temos 
        um estoque de banalidades apropriadas sobre a vida que ocasionalmente 
        distribuímos para nossos semelhantes tais como "todos devem 
        morrer algum dia", "não se pode viver para sempre" 
        etc. Porém, quando se está só, e é noite, 
        muito escura, e ainda não se ouve nada e não se vê 
        nada a não ser os pensamentos que somam e subtraem os anos, as 
        longas filas daqueles fatos desagradáveis que, impiedosamente, 
        indicam quão longe o ponteiro do relógio se moveu adiante 
        e a lenta, irresistível aproximação do muro da escuridão 
        que finalmente engolfará tudo que eu amo, possuo, desejo, espero 
        e planejo, então, todas as nossas profundidades sobre a vida se 
        esvaem furtivamente para algum esconderijo secreto e o medo envolve o 
        insone como um cobertor asfixiante.
 Muitos jovens 
        têm, no fundo, um medo pânico da vida (ainda que, ao mesmo 
        tempo, eles a desejem intensamente) e um número ainda maior de 
        idosos tem o mesmo medo da morte. De fato, eu conheci pessoas que temeram 
        muito a vida quando eram jovens, para, depois, igualmente, sofrerem pelo 
        medo da morte. Quando eles são jovens, diz-se que eles têm 
        resistência infantil contra as demandas normais da vida. Pode-se 
        dizer a mesma coisa quando eles são velhos, pois estão, 
        do mesmo modo, temerosos com uma das demandas normais da vida. Estamos 
        tão convencidos de que a morte é simplesmente o fim de um 
        processo que, ordinariamente, não nos ocorre conceber a morte como 
        uma meta e um preenchimento, como fazemos, sem hesitação, 
        com os desígnios e propósitos da vida juvenil na sua ascendência.
 A vida é 
        um processo-energia. Como todo processo-energia, ela é, em princípio, 
        irreversível e é, portanto, dirigida a uma meta. Essa meta 
        é um estado de repouso. No fim das contas, tudo o que acontece 
        é, assim como foi, não mais do que o distúrbio inicial 
        de um estado de repouso perpétuo que continuamente tenta se restabelecer. 
        Vida é teleologia par excellence1; é o esforço 
        intrínseco em direcção a uma meta e o organismo vivo 
        é um sistema de intenções que aspiram se realizar. 
        O fim de cada processo é sua meta. Todo fluxo de energia é 
        como um corredor que se empenha, com o maior esforço e toda a sua 
        força para atingir sua meta. O desejo juvenil pelo mundo e pela 
        vida, pela satisfação de elevadas expectativas e metas distantes 
        é o óbvio impulso teleológico da vida que, imediatamente, 
        se transforma em medo da vida, resistências neuróticas, depressões 
        e fobias se, num certo ponto, permanece preso no passado, ou recua diante 
        dos riscos, sem os quais a meta invisível não pode ser atingida. 
        Com o atingimento da maturidade e no zénite da existência 
        biológica, a vida se lança em direcção a uma 
        meta sem nenhum vacilo. Com a mesma intensidade e irresistibilidade com 
        a qual ela se empenhou para cima antes da meia idade, a vida agora desce; 
        para a meta que não mais se encontra no pico, mas no vale onde 
        a ascensão começou. A curva da vida é como a parábola 
        de um projéctil que, perturbada no seu estado inicial de repouso, 
        sobe e, então, retorna para um estado de repouso.
 A curva 
        psicológica da vida, contudo, se recusa a se conformar com essa 
        lei da natureza. Às vezes, a falta de acordo começa cedo, 
        na ascensão. O projéctil ascende biologicamente, mas, psicologicamente, 
        ele fica para trás. Nós erramos atrás dos nossos 
        anos, abraçando nossa infância, como se dela não pudéssemos 
        nos separar. Paramos os ponteiros do relógio e imaginamos que o 
        tempo irá parar, quieto. Quando, após algum atraso, nós 
        finalmente atingimos o pico, então, mais uma vez, psicologicamente, 
        nós nos acomodamos para repousar e, embora possamos nos ver deslizando 
        para baixo do outro lado, nós nos apegamos, ainda que apenas com 
        olhadelas ambiciosas para trás, para o pico uma vez atingido. Assim 
        como, cedo, o medo era um empecilho para a vida, também agora ele 
        oferece resistência no caminho da morte. Podemos até admitir 
        que o medo da vida nos reteve na subida, mas, exactamente por causa desse 
        atraso, nós alegamos de tudo apenas para segurar com firmeza o 
        pico que agora alcançamos. Mesmo que possa ser óbvio que, 
        apesar de toda a nossa resistência (agora, tão profundamente 
        lamentada), a vida tenha se reafirmado, ainda não prestamos atenção 
        e continuamos tentando fazê-la parar, quieta. Nossa psicologia, 
        então, perde sua base natural. A consciência se mantém 
        no ar, enquanto a curva da parábola mergulha na descendente com 
        velocidade cada vez maior.
 A vida natural 
        é o solo nutritivo da alma. Qualquer um que falhe em seguir com 
        a vida, permanece suspenso, teso e rígido no meio do ar. É 
        por isso que muitas pessoas se tornam tolas com a velhice; elas olham 
        para traz e se agarram ao passado com um medo secreto da morte em seus 
        corações. Elas se retiram do processo da vida, ao menos 
        psicologicamente, e, consequentemente, permanecem fixas como nostálgicos 
        pilares de sal, com vívidas recordações da juventude, 
        mas sem relação de vida com o presente. Do meio da vida 
        em diante, somente se mantém vigorosamente vivo quem está 
        preparado para morrer com vida. Pois, na secreta hora do meio-dia da vida 
        a parábola se reverteu, a morte nasceu. A segunda metade da vida 
        não significa ascensão, desabrochamento, incremento, exuberância, 
        mas morte, já que o fim é sua meta. A negação 
        da realização da vida é sinónimo de recusa 
        em aceitar sua conclusão. Ambos significam não querer viver 
        e, não querer viver é idêntico a não querer 
        morrer. Expansão e retracção fazem uma curva.
 Sempre que 
        possível, nossa consciência se recusa a se acomodar a essa 
        verdade inegável. Ordinariamente, nos apegamos ao nosso passado 
        e permanecemos imobilizados na ilusão da juventude. Ser velho é 
        muito impopular. Ninguém parece considerar que não ser hábil 
        para envelhecer é tão absurdo quanto não ser hábil 
        para superar em crescimento os sapatos infantis. Um homem de trinta anos 
        ainda infantil seguramente é para ser deplorado, mas um septuagenário 
        juvenil - não é encantador? E, no entanto, ambos são 
        perversos, sem estilo, monstruosidades psicológicas. Um homem jovem 
        que não lute e conquiste perde a melhor parte de sua juventude 
        e, um homem velho que não sabe como ouvir os segredos dos regatos, 
        conforme eles despencam dos picos para os vales, não faz sentido; 
        ele é uma múmia espiritual que não é mais 
        do que uma rígida relíquia do passado. Ele se mantém 
        à margem da vida, mecanicamente se repetindo a última trivialidade.
 Nossa relativa 
        longevidade, confirmada pelas estatísticas atuais, é um 
        produto da civilização. É totalmente excepcional 
        para os povos primitivos atingir a velhice. Por exemplo, quando eu visitei 
        as tribos primitivas do Leste da África, vi muito poucos homens 
        com os cabelos brancos que poderiam ter mais de sessenta anos. Mas, eles 
        eram realmente velhos, eles pareciam ter sido sempre velhos, tão 
        plenamente eles haviam assimilado suas idades. Eles eram exactamente o 
        que eles eram, em todos os aspectos. Nós somos sempre apenas mais 
        ou menos o que realmente somos. É como se nossa consciência 
        tivesse, de algum modo, se afastado de seus alicerces naturais e não 
        mais soubesse como se alinhar com o ritmo da natureza. É como se 
        sofrêssemos de uma hybris2 da consciência que enganosamente 
        nos leva a acreditar que o tempo de vida de alguém é uma 
        mera ilusão que pode ser alterada de acordo com sua vontade. (É 
        de se perguntar onde nossa consciência obtém tal habilidade 
        para colocar-se tão contrária à natureza e o que 
        essa arbitrariedade poderia significar.)
 Assim como 
        um projéctil voando para sua meta, a vida termina na morte. Mesmo 
        sua ascensão e seu zénite são apenas estágios 
        e meios para essa meta. Essa fórmula paradoxal não é 
        mais do que uma dedução lógica do fato que a vida 
        se dirige para uma meta e é determinada por um propósito. 
        Não creio que eu seja, aqui, culpado de jogar com silogismos. Nós 
        garantimos meta e propósito para a ascensão da vida; por 
        que não para a descida? O nascimento de um ser humano é 
        prenhe de significados; por que não a morte? Por mais de vinte 
        anos o homem em crescimento está sendo preparado para o completo 
        desabrochar de sua natureza individual; por que não poderia o homem 
        velho preparar-se durante mais de vinte anos para sua morte? Por certo, 
        no zénite, o indivíduo obviamente atingiu alguma coisa, 
        ele é isso e ele tem isso. Mas, o que é obtido com a morte?
 Neste ponto, 
        exactamente quando isso poderia ser esperado, eu não quero, de 
        repente, sacar uma crença do meu bolso e convidar meu leitor a 
        fazer o que ninguém pode fazer - ou seja, acreditar em alguma coisa. 
        Devo confessar que eu próprio também nunca poderia fazê-lo. 
        Assim, eu certamente não afirmarei agora que se deve acreditar 
        na morte como sendo um segundo nascimento nos levando a sobreviver para 
        além do túmulo. Mas eu posso ao menos mencionar que o consensus 
        gentium3 decidiu visões sobre a morte, inequivocamente expressas 
        em todas as grandes religiões do mundo. Pode-se mesmo dizer que, 
        em sua maioria, essas religiões são complicados sistemas 
        de preparação para a morte, de tal modo que a vida, de acordo 
        com minha fórmula paradoxal, realmente não tem significado 
        excepto como uma preparação para a suprema meta da morte. 
        Nas duas maiores religiões vivas, o Cristianismo e o Budismo, o 
        sentido da existência é consumado no seu fim.Desde o Iluminismo se desenvolveu um ponto de vista a respeito da natureza 
        da religião que, ainda que seja uma concepção racionalista 
        tipicamente equivocada, merece ser mencionado porque é muito amplamente 
        disseminado. De acordo com essa visão, todas as religiões 
        são alguma coisa parecida com um sistema filosófico e, como 
        eles, são tramadas na cabeça. Supõe-se que alguém, 
        em algum momento, inventou Deus e diversos dogmas e que tem conduzido 
        a humanidade por aí, puxada pelo nariz, pelo nariz com essa fantasia 
        "desejosa"4.
 Mas, essa 
        opinião é contraditada pelo fato psicológico de que 
        a cabeça é um órgão particularmente inadequado 
        quando se começa a pensar em símbolos religiosos. Eles decerto 
        não provêm da cabeça, mas de algum outro lugar, talvez 
        do coração; certamente, de um profundo nível psíquico 
        muito pouco semelhante à consciência, que é sempre 
        a camada superior. É por isso que os símbolos religiosos 
        têm um carácter nitidamente "revelador"; eles são, 
        usualmente, produtos espontâneos da atividade psíquica inconsciente. 
        Eles são alguma outra coisa além do pensamento; ao contrário, 
        no curso do milénio, eles se desenvolveram, vegetativamente , como 
        manifestações naturais da psique humana. Mesmo actualmente 
        podemos ver em indivíduos, a génese espontânea de 
        símbolos religiosos genuínos e válidos, aflorando 
        do inconsciente como flores de uma espécie estranha, enquanto a 
        consciência fica à margem, perplexa, não sabendo o 
        que fazer com essas criações. Pode-se assegurar, sem muita 
        dificuldade, que, na forma e no conteúdo, esses símbolos 
        individuais provêm da mesma mente, ou "espírito" 
        (ou o que quer que seja chamado) inconsciente, como as grandes religiões 
        da espécie humana. Em todo caso, a experiência mostra que 
        as religiões não são, em nenhum sentido, construções 
        conscientes, mas que provêm da vida natural da psique inconsciente 
        para a qual, de algum modo, dá adequada expressão. Isso 
        explica suas distribuições universais e suas enormes influências 
        sobre a humanidade através da história, o que seria incompreensível 
        se os símbolos religiosos não fossem , no fundo, verdades 
        da natureza psicológica do homem.
 Eu sei que 
        muitas pessoas têm dificuldade com a palavra "psicológica". 
        Para confortar esses críticos, eu gostaria de acrescentar que ninguém 
        sabe o que é a "psique" e que se sabe muito pouco o quão 
        longe a "psique" se prolonga na natureza. Uma verdade psicológica 
        é, assim, apenas uma coisa tão boa e respeitável 
        como uma verdade física, a qual se limita à matéria 
        como aquela o faz à psique.O consensus gentium que se expressa através das religiões 
        está, segundo vemos, em correspondência com minha fórmula 
        paradoxal. Por consequência, pareceria estar mais de acordo com 
        a psique colectiva da humanidade considerar a morte como a realização 
        do sentido da vida e como sua meta mais verdadeira, ao invés de 
        uma mera cessação sem sentido. Qualquer um que aprecie uma 
        opinião racionalista a esse respeito, se isolou psicologicamente 
        e permanece em oposição à sua própria natureza 
        humana básica.
 
 Esta última 
        sentença contém uma verdade fundamental sobre todas as neuroses, 
        vez que as desordens nervosas consistem primeiramente numa alienação 
        dos próprios instintos, numa separação da consciência 
        de certos fatos básicos da psique. Por consequência, opiniões 
        racionalistas andam inesperadamente junto de sintomas neuróticos. 
        Como estes, elas consistem em pensamento distorcido, que tomam o lugar 
        de pensamento psicologicamente correcto. Essa última espécie 
        de pensamento mantém sua conexão com o coração, 
        com os caminhos da psique, a raiz-mestra. Pois, iluminação 
        ou não-iluminação, consciência ou não 
        consciência, a natureza se prepara para a morte. Se pudéssemos 
        observar e registrar os pensamentos de uma pessoa jovem quando ela tem 
        tempo e ócio para devaneios, descobriríamos que, à 
        parte algumas imagens-memória, suas fantasias estão, principalmente, 
        preocupadas com o futuro. De fato, muitas fantasias consistem em antecipações. 
        Elas são, em sua maioria, actos preparatórios, ou mesmo 
        exercícios psíquicos para lidar com certas realidades futuras. 
        Se pudéssemos fazer essa mesma experiência com uma pessoa 
        idosa - sem o seu conhecimento, é claro - naturalmente encontraríamos, 
        devido à sua tendência a olhar para traz, um número 
        muito maior de imagens-memória do que em uma pessoa jovem, mas 
        nós também encontraríamos um numero surpreendentemente 
        maior de antecipações, incluindo aquelas da morte. Pensamentos 
        de morte se empilham num espantoso grau, conforme os anos aumentam. Quer 
        se queira ou não, a pessoa idosa se prepara para a morte. É 
        por isso que eu penso que a própria natureza já está 
        se preparando para o fim. Objectivamente, é indiferente o que a 
        consciência individual possa pensar sobre isso. Mas, subjectivamente, 
        faz uma enorme diferença se a consciência se mantém 
        em passo com a psique ou se ela se apega a opiniões das quais o 
        coração nada sabe. É tão neurótico 
        na velhice não focar na meta da morte, como o é na juventude 
        reprimir fantasias que tem que ser feitas com o futuro. 
 Na minha 
        longa experiência psicológica, observei uma imensidão 
        de pessoas cujas actividades psíquicas inconsciente eu podia seguir 
        na presença imediata da morte. Como regra, o fim que se aproxima 
        era indicado por aqueles símbolos que, também na vida normal, 
        evidenciam mudanças na condição psicológica 
        - símbolos de renascimento, tais como mudanças de localidade, 
        viagens e outros parecidos. Frequentemente, eu tive a oportunidade de 
        traçar de volta, por mais de um ano, numa série de sonhos, 
        as indicações da aproximação da morte, mesmo 
        nos casos onde esses pensamentos não eram instigados por situações 
        externas. O ato de morrer, assim, tem seu início muito antes da 
        morte real. Alem do mais, isso muitas vezes se mostra em mudanças 
        peculiares de personalidade, que podem preceder a morte em um tempo muito 
        longo. No geral, eu ficava espantado ao ver quão pouco alvoroço 
        a psique inconsciente faz da morte. Poderia parecer como se a morte fosse 
        alguma coisa relativamente sem importância, ou, talvez, nossa psique 
        não se preocupasse com o que acontece com o indivíduo. Mas, 
        parece que o inconsciente está, acima de tudo, interessado em como 
        se morre; isto é, se a atitude da consciência está 
        ajustada ao ato de morrer ou não. Por exemplo, uma vez eu tive 
        que tratar de uma mulher com sessenta e dois anos. Ela era ainda vigorosa 
        e moderadamente inteligente. Não era por falta de cérebro 
        que ela era não conseguia entender seus sonhos. Infelizmente, apenas 
        era muito claro que ela não queria entende-los. Seus sonhos eram 
        muito claros , mas também muito desagradáveis. Ela havia 
        fixado em sua mente que ela era uma mãe impecável com seus 
        filhos, mas os filhos não compartilhavam essa visão de modo 
        algum e os sonhos também mostravam uma convicção 
        muito contrária. Eu fui obrigado a parar o tratamento após 
        algumas semanas de infrutíferos esforços, porque eu tive 
        que partir para o serviço militar (era durante a guerra). Nesse 
        meio tempo, a paciente foi acometida de uma doença incurável, 
        chegando após uns poucos meses a uma condição moribunda 
        que poderia levá-la ao fim a qualquer momento. Na maior parte do 
        tempo ela estava numa espécie de delírio ou num estado sonambúlico 
        e, nessa condição mental curiosa, ela espontaneamente retomou 
        o trabalho analítico. Ela falou de seus sonhos novamente e reconheceu 
        para si mesma tudo o que ela havia previamente negado a mim com grande 
        veemência e muito mais além. Esse trabalho auto-analítico 
        continuou diariamente por várias horas, por cerca de seis meses. 
        Ao fim desse período, ela havia se acalmado, assim como um paciente 
        durante um tratamento normal e, então, ela morreu.
 Dessa e 
        de numerosas outras experiências desse tipo, eu devo concluir que 
        a nossa psique é, no mínimo, não indiferente ao acto 
        de morrer do indivíduo. A urgência, muitas vezes vista naqueles 
        que estão morrendo, para corrigir o que ainda está errado 
        poderia apontar na mesma direção. Como essas experiências devem ser finalmente interpretadas é 
        um problema que excede a competência de uma ciência empírica 
        e vai além de nossas capacidades intelectuais, pois, para atingir 
        uma conclusão final deve-se, necessariamente, ter tido uma experiência 
        real de morte. Esse evento, infelizmente, põe o observador numa 
        posição que torna impossível, para ele, dar um relato 
        objectivo de sua experiência e das conclusões dela resultantes.
 A consciência 
        se move por estreitos limites, dentro do breve intervalo de tempo entre 
        seu início e seu fim, o qual é encurtado em cerca de um 
        terço pelos períodos de sono. A vida do corpo continua por 
        um pouco mais; ela sempre começa antes e, muitas vezes, cessa depois 
        da consciência. Início e fim são aspectos inevitáveis 
        do todos os processos. Mesmo num exame mais aproximado é extremamente 
        difícil enxergar onde termina um processo e outro começa, 
        já que eventos e processos, começos e fins se fundem e, 
        falando estritamente, formam um contínuo indivisível. Separamos 
        os processos uns dos outro para fins de discriminação e 
        entendimento, sabendo muito bem que, no fundo, toda divisão é 
        arbitrária e convencional. Esse procedimento de modo algum afecta 
        o contínuo do todo o processo, pois "começo" e 
        "fim" são, primeiramente, necessidades da cognição 
        consciente. Podemos estabelecer, com razoável certeza, que uma 
        consciência individual, no que ela diz respeito a nós mesmos, 
        tem um fim. Mas, permanece duvidoso se isso significa que a continuidade 
        do processo psíquico também é interrompida, já 
        que a ligação da psique com o cérebro pode ser afirmada 
        com bem menos certeza hoje do que o poderia ser há cinquenta anos. 
        A psicologia deve primeiro digerir certos fatos parapsicológicos, 
        o quê, até agora, ela mal começou a fazer. 
 A psique 
        inconsciente parece possuir qualidades que lançam uma luz muito 
        peculiar sobre sua relação com espaço e tempo. Estou 
        pensando naqueles fenómenos telepáticos espaciais e temporais, 
        os quais, como sabemos, são muito mais fáceis de ignorar 
        do que de explicar. A esse respeito, a ciência, com umas poucas 
        louváveis excepções, tem, até aqui, pego o 
        caminho mais fácil de ignorá-los. Devo confessar, contudo, 
        que as assim chamadas faculdades telepáticas da psique me causaram 
        muita dor-de-cabeça, pois a designação "telepatia" 
        está muito longe de explicar qualquer coisa. A limitação 
        da consciência a espaço e tempo é uma realidade tão 
        irresistível que cada vez em que essa verdade fundamental é 
        rompida deve ser classificada como um evento de elevado significado teórico, 
        pois ele poderia provar que a barreira espaço-tempo pode ser anulada. 
        O factor de anulação seria, então, a psique, já 
        que espaço-tempo se agregaria a ela, quando muito, como uma qualidade 
        relativa e condicionada. Sob certas condições, a psique 
        poderia mesmo romper as barreiras do espaço e do tempo precisamente 
        devido a uma qualidade essencial para ela, isto é, sua natureza 
        relativamente transespacial e transtemporal. Essa possível transcendência 
        do espaço-tempo, da qual, me parece, há uma boa dose de 
        evidência, é de uma importância tão incalculável 
        que ela deveria incitar o espírito de pesquisa aos maiores esforços. 
        Nosso presente desenvolvimento da consciência está, contudo, 
        tão atrasado que, em geral, ainda nos faltam os equipamentos científicos 
        e intelectuais para adequadamente avaliar até que ponto os fatos 
        da telepatia dão suporte à natureza da psique. Eu me referi 
        a esse grupo de fenómenos meramente para indicar que a ligação 
        da psique com o cérebro, isto é, sua limitação 
        espaço-temporal, já não é mais auto-evidente 
        e incontroversa como nós fomos levados a acreditar até agora. 
        
 Qualquer 
        um que tenha o menor conhecimento do material parapsicológico que 
        já existe e tem sido minuciosamente verificado, saberá que 
        os ditos fenôómenos telepáticos são fatos inegáveis. 
        Uma investigação objectiva e crítica dos dados disponíveis 
        estabeleceria que percepções ocorrem como se em parte não 
        houvesse espaço e, em parte, não houvesse tempo. Naturalmente, 
        não se pode extrair disso a conclusão metafísica 
        de que, no mundo das coisas, como elas são "nelas mesmas" 
        não há nem espaço nem tempo e que a categoria espaço-tempo 
        é, por conseguinte, uma teia na qual a mente humana se teceu como 
        numa ilusão nebulosa. Espaço e tempo não são 
        apenas as mais imediatas certezas para nós, eles são também 
        óbvios empiricamente, já que tudo o que é observável 
        acontece como se ocorresse no espaço e tempo. Em face dessa certeza 
        irresistível, é compreensível que a razão 
        tenha a maior dificuldade em aceitar a validade da natureza peculiar dos 
        fenómenos telepáticos. Mas, qualquer um que fizer justiça 
        aos fatos não pode senão admitir que suas aparentes total 
        falta de limites espaço-temporais são suas qualidades mais 
        essenciais. Em ultima análise, nossa ingénua percepção 
        e imediata certeza são, falando estritamente, não mais do 
        que evidência de uma forma de percepção psicológica 
        a priori que, simplesmente, controla qualquer outra forma. O fato 
        de que sejamos totalmente incapazes de imaginar uma forma de existência 
        sem espaço e tempo de nenhum modo prova que tal existência 
        seja ela própria impossível. E, desse modo, assim como não 
        podemos deduzir de uma aparência de total falta de limites espaço-temporais 
        nenhuma conclusão absoluta sobre uma forma de existência 
        sem espaço-tempo, também não podemos concluir da 
        qualidade espaço-tempo aparente à nossa percepção 
        que não haja forma de existência sem espaço e tempo. 
        Não é apenas possível duvidar da validade absoluta 
        da percepção espaço-tempo; em vista dos fatos disponíveis, 
        é, mesmo, imperativo fazê-lo. A possibilidade hipotética 
        de que a psique entre em contacto com uma forma de existência fora 
        do espaço e tempo coloca uma interrogação científica 
        que merece sérias considerações por um longo tempo 
        adiante. As ideias e dúvidas dos físicos teóricos 
        em nossos dias deveriam induzir um ânimo cauteloso também 
        nos psicólogos, pois, filosoficamente considerada, o que nós 
        queremos dizer com "plena limitação do espaço" 
        senão uma relativização da categoria espaço? 
        Algo similar poderia facilmente ocorrer com a categoria do tempo (e também 
        com a da causalidade). Dúvidas sobre esses tópicos estão 
        mais justificadas actualmente do que em qualquer tempo anterior.
 A natureza 
        da psique atinge obscuridades para muito além do escopo do nosso 
        entendimento. Ela contém tantos enigmas quanto o universo com seus 
        sistemas galácticos, diante de cuja majestosa configuração 
        somente uma mente sem imaginação pode não admitir 
        sua própria insuficiência. Essa incerteza extrema da compreensão 
        humana torna o rebuliço intelectualista não apenas ridículo, 
        mas, também, deploravelmente estúpido. Se, por conseguinte, 
        das necessidades de seu próprio coração, ou de acordo 
        com as antigas lições da sabedoria humana, ou por respeito 
        ao fato psicológico de que a percepção "telepática" 
        ocorre, alguém chegasse à conclusão de que a psique, 
        em seus mais profundos alcances, participa de uma forma de existência 
        para além do espaço e tempo e, assim, compartilha do que 
        é inadequada e simbolicamente descrito como "eternidade"- 
        então a razão crítica não poderia contar com 
        nenhum outro argumento senão que o non liquet5 da ciência. 
        Além disso, esse alguém teria a vantagem inestimável 
        de se adequar a uma tendência da psique humana que existe desde 
        tempos imemoriais e é universal. Qualquer um que não chegue 
        a essa conclusão, seja por cepticismo ou rebelião contra 
        a tradição, por falta de coragem ou experiência psicológica 
        inadequada, ou irreflectida ignorância, tem muito pouca chance, 
        estatisticamente, de se tornar um pioneiro da mente, mas, ao invés, 
        tem a indubitável certeza de entrar em conflito com as verdades 
        de seu sangue. Agora, se essas são, em última instância, 
        verdades absolutas ou não, nós nunca poderemos determinar. 
        Basta que elas estejam presentes em nós como uma "tendência" 
        e nós sabemos, por nossa conta, o que significa entrar em conflito 
        irracional com essas verdades. Significa a mesma coisa do que a negação 
        consciente dos instintos - desenraizamento, desorientação, 
        ausência de significado, ou seja lá como esses sintomas de 
        inferioridade possam ser chamados. Um dos mais fatais erros sociológicos 
        e psicológicos, nos quais nosso tempo é tão abundante, 
        é a suposição de que alguma coisa possa se tornar 
        completamente diferente de um momento para o outro; por exemplo, que o 
        homem possa mudar radicalmente sua natureza, ou que alguma fórmula 
        ou verdade pudesse ser encontrada, o que representaria um começo 
        inteiramente novo. Qualquer mudança essencial, ou mesmo uma ligeira 
        melhoria sempre tem sido um milagre. Desvio da verdade do sangue gera 
        desassossegos neuróticos e nós temos tido o suficiente disso 
        nestes dias. Desassossego gera total ausência de significado e a 
        falta de sentido na vida é uma doença da alma cuja inteira 
        extensão e inteira importância nossa era ainda não 
        começou a compreender. 1 Por excelência. Em 
        francês, no original. 2 Desmedida; falta da justa medida. Em grego latinizado, 
        no original. 3 Senso comum. Em latim, no original. 4 "wishfulfilling fantasy", no original. 5 Não está claro. Em Latim, no original. 
        Essa expressão é usada para afirmar que não se está 
        entendendo bem a situação e por isso não é 
        possível formular um juízo definitivo: na realidade, trata-se 
        de uma antiga fórmula jurídica, expressa por Cícero, 
        que indicava a falta de elementos suficientes para proferir um veredicto, 
        havendo portanto lugar para averiguações suplementares ou 
        para adiamento. (cf. Dicionário de sentenças Latinas r Gregas, 
        de Renzo Tosi, Ed. Martins Fontes). |